Recuperação econômica da Argentina: o que mudou com Milei, o que esperar daqui pra frente — e como o Brasil pode se espelhar no exemplo vizinho

Panorama completo da economia argentina pré e pós-Milei: medidas, dados atuais, riscos e perspectivas — com paralelo direto com o Brasil.

Leandro Nascimento

8/22/20257 min read

A Argentina saiu de um 2023 dramático (inflação de 211,4% no ano, com 25,5% só em dezembro) para uma desaceleração forte em 2024/25 e um pacote de reformas que virou a mesa da política econômica. Ao mesmo tempo, o Brasil opera com inflação bem mais baixa, mas juros altíssimos e um debate fiscal permanente. Vamos por partes.

Como a Argentina chegou ao “fundo do poço” (até 2023)

Antes do choque de 2024/25, a economia argentina vinha carregando um combo de fragilidades por mais de uma década: déficits fiscais recorrentes financiados pelo Banco Central, congelamento de tarifas e subsídios pesados (energia e transporte), além de controles de capitais e um quebra-cabeça de câmbios (oficial, paralelos, impostos sobre dólar). A pandemia apertou o torniquete; a seca histórica de 2023 reduziu exportações e trouxe ainda menos dólares. Sem acesso pleno a financiamento externo, o Tesouro recorreu a dívida de curtíssimo prazo e indexada, enquanto o BCRA acumulava passivos remunerados — criando inflação “por dentro” e expectativas desancoradas.

O resultado foi inflação anual acima de 200% em 2023, queda da renda real, pobreza em alta e um sistema de preços distorcido, no qual importar, exportar ou investir exigia navegar por regras que mudavam a toda hora. Este cenário explica por que o “terreno” para reformas estava devastado — e, paradoxalmente, por que havia espaço para uma virada rápida quando vieram ajuste fiscal, reorganização monetária e simplificação cambial. Abaixo, destrinchamos as engrenagens desse colapso — fiscal, monetária, cambial e social — para entender como o país chegou lá e o que precisou ser consertado.

  • Inflação cronicamente alta: 211,4% em 2023 — a maior desde o início dos anos 1990.

  • Câmbios paralelos e distorções: múltiplas taxas (oficial, “blue”, etc.) com gaps superiores a 100% em 2023, corroendo previsibilidade e afastando investimentos.

  • Pobreza elevada: o aperto de 2024 levou a taxa de pobreza a 52,9% no 1º semestre; depois, com a desinflação, recuou a 38,1% no 2º semestre de 2024 (dado do INDEC).

O que a gestão Milei fez (dez/2023–2025)?

Depois de anos de remendos, a estratégia de Milei foi choque e simplificação: arrumar as contas, reancorar preços e destravar investimento. O plano atacou quatro frentes ao mesmo tempo. No fiscal, cortou subsídios e gastos, mirando déficit zero. No monetário, desmontou a engrenagem de emissão via passivos do Banco Central e mudou a forma de remunerar liquidez. No câmbio, promoveu uma maxi-desvalorização inicial, adotou um crawling previsível e começou a afrouxar o “cepo” de maneira gradual. No regulatório, veio a faxina pró-mercado: desregulamentação por decreto, privatizações na mesa e o RIGI, um pacote de incentivos de longo prazo para grandes projetos (energia, mineração, infraestrutura).

Houve também medidas “de encanamento”, como o BOPREAL para ordenar dívidas com importadores, e a recomposição tarifária para tirar distorções de energia e transporte. O custo social do ajuste foi sentido no curto prazo, mas a troca foi previsibilidade e queda da inflação, condição para a retomada.

A seguir, destrinchamos cada eixo — fiscal, monetário, cambial e regulatório — e o que já aparece nos indicadores.

1) Choque inicial de câmbio e ajuste

  • Maxi-desvalorização do peso em 13/dez/2023 (~-50%, para ~ARS 800/USD) e anúncio de “crawling peg”. O objetivo foi remover atrasos cambiais e alinhar preços relativos.

  • Cortes de subsídios e obras: enxugamento de gastos (energia/transportes) e cancelamento de licitações de obras.

2) Desregulamentação ampla por decreto (DNU 70/2023)

  • Pacote liberalizante que revogou/alterou dezenas de regras econômicas e abriu caminho para reformas trabalhistas e setoriais (parte contestada na Justiça).

3) “Ley Bases” (jun/2024) + pacote fiscal

  • Aprovada em 27/jun/2024, a Lei 27.742 incluiu deregulação, autorizações de privatização e o RIGI — regime de incentivos a grandes investimentos. Alguns itens fiscais foram alterados no Senado (Ganancias/Bienes Personales), mas regulamentações posteriores ajustaram alíquotas e mínimos.

  • RIGI: benefícios tributários, aduaneiros e cambiais com estabilidade por até 30 anos para projetos > US$ 200 milhões (mineração, energia, infraestrutura, etc.).

4) Reorganização da política monetária e do BCRA

  • Fim das Leliq (não mais licitadas; estoque migrando para repos/passes e, depois, para instrumentos do Tesouro) e eliminação da “emissão endógena” dos passivos remunerados — transferindo o custo para o orçamento e reforçando o “déficit zero”.

  • Meta de base monetária: governo anunciou congelamento/neutralização da expansão da base — inclusive com intervenções no câmbio financeiro (CCL) para esterilizar emissões.

5) Normalização cambial gradual

  • 2025 trouxe afrouxamento relevante do “cepo” e metas com o IMF para reconstruir reservas (+US$ 4 bi em 2025). O gap entre o oficial e paralelos estreitou a níveis mínimos desde 2019.

6) Passivo com importadores

  • Emissão de BOPREAL para “destravar” dívidas comerciais em dólares, dando previsibilidade a empresas.

7) Privatizações e empresas estatais

  • A Ley Bases listou companhias “sujeitas à privatização” e abriu governança para concessões; houve idas e vindas (ferrovias, mídia pública, Aerolíneas), mas a arquitetura legal avançou.

8) Energia e indústria

  • Redução de subsídios (US$ 2,7 bi em 7 meses de 2024) e foco em atrair capex para Vaca Muerta, com saldo comercial de energia positivo.

Onde a economia argentina está hoje (ago/2025)

  • Inflação: julho/2025 fechou em 1,9% m/m; no acumulado dos últimos 12 meses está em 36,6% (queda forte ante 211% em 2023). Em 2025 até julho, 17,3%.

  • Atividade: após o tombo de 2024, indicadores mensais (EMAE) mostram alta interanual no 1º semestre de 2025 (picos de +7,7% a/a em abril) e estimativas de +6% a/a em junho. Ainda há volatilidade mês a mês.

  • Fiscal: 2024 fechou com superávit financeiro de 0,3% do PIB e primário de 1,8% — o primeiro superávit anual em 14 anos. 2025 começou mantendo superávits mensais, apesar de ajustes tributários.

  • Câmbio/controles: o governo reduziu fortemente as amarras e sinalizou transição de regime com metas de reservas no novo acordo com o IMF (US$ 20 bi/48 meses).

O que esperar (2025–2026): cenários e riscos?

Depois do choque inicial e da queda rápida da inflação, a Argentina entrou na fase mais delicada do ciclo: transformar ajuste em crescimento sustentável sem perder a âncora fiscal e a normalização cambial. Os próximos 18–24 meses serão decididos por três vetores principais: disciplina de gastos, fluxo de dólares (agro, energia e investimentos do RIGI) e confiança — política, jurídica e regulatória. Se esses pilares ficarem de pé, o país colhe aceleração do PIB e reativação do crédito; se falharem, a travessia fica mais acidentada.

Para organizar o radar, pense em três trilhos: um cenário-base de desinflação contínua com retomada gradual; um otimista em que o investimento destrava mais rápido (energia/mineração puxando exportações e reservas); e um adverso em que choques políticos ou externos reabrem a ferida cambial e exigem novos apertos. O “jogo” estará nos sinais adiantados: evolução das reservas, gap entre câmbios, ritmo de liberação do cepo, arrecadação e gasto primário, salários reais e aprovação de regulamentações-chave do RIGI.

Em resumo: a Argentina já virou a direção, mas a velocidade da recuperação — e a sua durabilidade — dependem de execução fina e de como o mundo trata emergentes. A seguir, destrinchamos cada cenário e os principais riscos, com indicadores práticos para acompanhar.

Riscos:

  1. Políticos (Congresso/Justiça travando reformas específicas);

  2. Sociais (pobreza ainda alta, sensibilidade a tarifas/ajustes);

  3. Cambiais (retirada total do “cepo” e dinâmica de reservas);

  4. Externos (termos de troca, apetite por emergentes).
    O acordo com o IMF é a “rede de segurança”, mas exige cumprimento de metas e transparência fiscal/contábil.

Brasil x Argentina: quem está mais “redondo” hoje?

  • Brasil: inflação controlada para padrões regionais, juros muito altos e dívida em alta (dívida bruta ~76,6% do PIB em jun/25). Objetivo do arcabouço é zerar o primário em 2025, mas a execução exige medidas de receita/contingenciamento.

  • Argentina: inflação despencando e melhora fiscal já entregue; porém, ainda muito mais volátil que o Brasil e dependente de continuidade política e do cronograma de saída do “cepo”.

O que isso significa para investidores brasileiros?

Para quem investe do lado de cá da fronteira, a “virada” argentina muda o jogo de risco x retorno na América do Sul. Enquanto o Brasil segue com inflação menor e juros ainda altos, a Argentina entra num ciclo de recuperação com volatilidade maior — o que pode abrir prêmios de risco interessantes em energia, mineração e infraestrutura, mas exige estômago e gerenciamento de câmbio. Em outras palavras: dá pra buscar crescimento no vizinho e estabilidade em casa, usando o Brasil como âncora e a Argentina como alavanca tática.

O que isso vira na prática? Pensar em horizontes diferentes (estrutural no Brasil, tático na Argentina), calibrar tamanho de posição e proteger a carteira com diversificação regional e regras simples de rebalanceamento. Nos próximos parágrafos, mostramos onde estão os prêmios, como acessar (ETFs/BDRs/fundos), quais gatilhos acompanhar (reservas, inflação, câmbio) e como montar uma exposição que caiba no seu perfil — sem heroísmo, mas com convicções testáveis.

Aviso amigo: não é recomendação de investimento. Use como mapa; a bússola é seu perfil de risco. 😉

Conclusão

Depois de mapear causas, remédios e números, dá pra amarrar o fio da meada sem rodeio: a Argentina trocou improviso por âncoras (fiscal, monetária e regulatória) e, com isso, empurrou a inflação ladeira abaixo e destravou um começo de retomada. Ainda é um rali de recuperação, com riscos políticos e cambiais no retrovisor, mas o vetor mudou de direção.

Para o leitor brasileiro, a moral da história é dupla: há lições copiáveis (disciplina de gasto, simplificação de regras, previsibilidade) e alertas intransferíveis (custo social do ajuste e execução milimétrica). Nos pontos abaixo, condensamos o que realmente importa: o que melhorou, o que falta e como isso conversa com o Brasil. 🎯

  • A estratégia de choque (fiscal + monetária + regulatória) mudou a inércia da economia argentina: inflação em rota de queda, superávit fiscal e reabertura gradual do câmbio. O IMF projeta crescimento forte em 2025 se as âncoras forem mantidas.

  • O risco argentino segue acima do brasileiro: pobreza ainda elevada, reformas contestadas e transição cambial sensível.

  • O Brasil mantém um ambiente macro mais previsível, com inflação menor e instituições sólidas, porém caro em juros e com agenda fiscal desafiadora para estabilizar a dívida.